terça-feira, 2 de junho de 2009

A TRISTE HISTÓRIA DA CASA 43


A Vila Maria Zélia é um lugar com muita história - e muitas histórias também. São, em grande parte, alegres relatos de gente que lá se conheceu e se casou, teve filhos e netos. Memórias de grandes feitos - enfim, histórias felizes. Mas eu resolvi contar aqui uma história triste. Talvez a mais infeliz de todos esses anos de existência da Vila Maria Zélia. É uma história de traição e vingança, de intolerância e violência.
Na casa 43, uma casa como todas as outras da vila operária, nasceu um homem chamado Roberto. Pode-se dizer que teve uma infância feliz, não muito diferente de qualquer outra criança de lá. Veio de uma família de operários. O pai trabalhava na fábrica. Tinha uma jornada pesada, passava o dia todo fora de casa. Só via a mulher e os filhos à noite, quando a família se reunia à mesa de jantar para um prato de sopa antes de ir para a cama. A mãe também trabalhava na fábrica, mas só meio período. O resto do dia cuidava da casa e dos filhos. Roberto era o irmão mais velho, o primogênito. O pai, apesar de operário, simpatizava-se com o ideal fascista. Tanto que o nome Roberto era uma homenagem ao Eixo: "ro" de Roma, "ber" de Berlim e "to" de Tóquio. Mas ele não disse isso a ninguém, isto é, não revelou que era uma homenagem. Só a mulher sabia. Ela não era nem a favor, nem contra. Não dava a mínima para política. Mas gostava do nome, achava bonito: Roberto.
E Roberto cresceu. Foi ficando cada dia mais parecido com o pai. Principalmente na simpatia que tinha pelo fascismo. Admirava Getúlio. Entrou para a fábrica, como todos os outros de sua idade, e não via com bons olhos as manifestações que seus colegas operários faziam em busca de condições de trabalho e salários menos aviltantes. "Pura algazarra, coisa de arruaceiros", dizia. Um dia, Roberto cometeu o erro que selaria seu destino - e o da sua família. Envolveu-se com um grupo de revolucionários com o nítido objetivo de frustrar uma enorme greve que estava sendo planejada. Passou um tempo com o grupo, ganhou a confiança dos líderes e, na hora apropriada, os delatou para a polícia. Vários foram presos e torturados. Dois dos membros principais não suportaram as atrocidades cometidas pelos agentes do regime, e morreram na prisão.
Um sentimento de cólera e de intolerância tomou conta dos jovens revolucionários, que clamavam por vingança. Numa noite, eles atearam fogo à casa 43, quando a família de Roberto dormia. Todos morreram - o pai, a mãe e os dois irmãos adolescentes. Roberto não estava. Havia se refugiado no interior do Estado, na casa de colaboradores do regime, logo após o episódio da greve frustrada. Ficou sabendo do ocorrido dias depois. Até hoje não se sabe ao certo do seu paradeiro. Dizem que nunca conseguiu se livrar da culpa pela dizimação da sua família. Entregou-se à bebida. Para alguns, teria enlouquecido. Nunca mais voltou à vila operária.
A casa 43 não foi ocupada desde o incêndio. Está abandonada há várias décadas. As crianças de hoje, que brincam na vila como as de antigamente, não se arriscam a passar perto da casa. Adultos evitam aproximar-se à noite. Comenta-se que é assombrada. E tem gente que jura, de pés juntos, ter visto Roberto, cabeludo e com o olhar perdido, vagando pela sala de estar à procura de seus pais.

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