sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

PERGUNTA DE CARNAVAL

Esse foi um carnaval antibaticum. Fui pra praia, acompanhado de (bons) amigos e livros. Li 'A Morte de Ivan Ilitch' e 'A Dócil'. Um amigo comentou, em tom irônico: "Bastante apropriado pra um carnaval". Passei os dias debaixo de uma árvore, de frente pro mar, devidamente abastecido de latinhas geladíssimas. Não saí de casa pra barzinho, centrinho, baladinha, muvucazinha ou qualquer outro inho (ou inha). Toda vez que ouvia um surdo, uma cuíca ou até um mísero tamborim, vindo da rua ou da telinha da Globo, fugia pro quarto e me emocionava com a história do homem que, ao saber que estava com os dias contados, descobre algo ainda pior: que sua existência, da qual tanto se honrava, não valia absolutamente nada, fora podre. Agora pergunto: como pode haver tanta vida nas cerca de 80 páginas dessa pequena novela de Tolstói, que trata exatamente do oposto, a morte?

quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

CENÁRIO

Terra arrasada. Um deserto. Árvores destruídas, sem vida. Pedaços de corpos espalhados pelo chão. No canto (sob iluminação fraca), uma cama, onde um homem nu observa ao redor. A seus pés, jaz uma criança, com uma boneca de pano nos braços. Ao lado da cama, uma pilha de livros. Há fotos espalhadas pelo chão, próximos à cama.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

MONÓLOGO

Quarto de hospital. Cheiro de hospital. Um leito. Um moribundo. Está sozinho no quarto.

- Carcaça. Carcaça podre e mal cheirosa. Uma existência que não se deu. Mero acúmulo de anos. Nada mais. Agora é esperar pela única coisa real, concreta, numa vida inteira. Já posso ver vocês, aves imundas. Venham comer, venham. Acham que tenho medo? Vocês trazem alívio em suas asas negras. Continuam a me espreitar? (Gritando.) Vão embora! Vão embora! Sumam daqui!

Entra uma enfermeira. Observa o moribundo em seu delírio. Para diminuir seu sofrimento, aplica-lhe mais uma injeção de morfina.

- Uma criança. Não passo de uma criança agora. (Vê a imagem da mãe.) Sim, mãe, já acordei, não precisa chamar mais. Já estou descendo para o café. O papai está esperando no carro? Já? Que mania! Odeio acordar cedo para ir à escola. Já estou descendo! Dói menos agora. Ainda bem. Diria 'graças a deus' anos atrás, anos da infância. Você ensinou assim, mãe. Lembra? Mas agora é só 'ainda bem'. Dói menos, AINDA BEM. Eu desaprendi. Ou melhor: quis desaprender. Todas as suas rezas e tudo o mais que você me ensinou. Cortei os laços. Não há mais vínculo. Não há mais mãe. Não há mais nada. Dói menos agora, ainda bem. Já não sinto nada, graças a d... Ainda bem. Você diria que um anjo está vindo para me buscar, não é, mãe? Mas não vejo anjo nenhum. Também não vejo mais os abutres, os urubus. Para onde foram? Não há mais carcaça aqui, apenas uma criança mostrando os dentes. Sorrio um sorriso infantil, inocente, porque dor não há mais. Não há mais dor. Não há mais. Não há. Dor.

Silêncio.

domingo, 15 de fevereiro de 2009

OVERDOSE DE (BOM) TEATRO

Fui ver 'Hamlet' na sexta, 'Calígula' no sábado e 'A Alma Boa de Setsuan' agora há pouco. Gostei dos três, mas em diferentes níveis e por razões distintas. 'Hamlet' é uma puta montagem, e o Wagner Moura está simplesmente voando no palco. De um lado, as cenas do Hamlet sarcástico, mergulhado na sua fingida loucura, e, de outro, a do homem perturbado, consciente da tragédia de seu destino, mostram um personagem com vários matizes, todos eles presentes na construção de Wagner Moura. Um trabalho impecável. Se tivesse que apontar um senão, seria o tom de alguns personagens, que esbarra no caricato. É o caso de Polônio e do Rei Cláudio, este interpretado pelo Tonico Pereira. Juro que, às vezes, fiquei com medo de que ele soltasse um "Lineuzinho, meu amiguinho" em alguma de suas falas. 'Calígula' foi uma grata surpresa. Nunca tinha visto o Thiago Lacerda no palco. Nada a ver com suas interpretações chapadas das novelas e minisséries da Globo. Ao contrário, deu ao seu Calígula a densidade exigida pelo texto espetacular de Camus. Em dez anos de tevê, sempre fazendo papel de mocinho, nunca vi em seu rosto as expressões que mostrou na peça. Visceral. 'A Alma Boa', se comparada às duas primeiras, é menor. Tem como mérito provar que Brecht pode ser divertido. Mas é teatrão e, confesso, me empolga menos. Pra ser sincero, acho que o maior problema do teatrão é o público de teatrão. E, no Teatro Renaissance, aí a coisa se potencializa. Tiozões com suas peruas falando alto, celulares tocando - e gente atendendo!, e, bem do meu lado, uma velhota de cabelo armado, dormindo e roncando pesado. Lixo puro.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2009

FIM DA REALIDADE

- Está chegando o grande dia.
- Acabou.
- Não sei.
- Alguma coisa morreu aqui dentro.
- Você trocou o filtro que estava vazando?
- Comprei flores na feira.
- Eu não esperava tão cedo.
- Se você soubesse o quanto esperei.
- Está indo de vez?
- Você conseguiu dormir essa noite?
- Deixe a chave com o porteiro quando sair.
(Silêncio)
- Quero ir embora.
- Acabou?

EUTANÁSIA

Morreu a italiana que estava em coma há 17 anos. Os cães do Vaticano já começaram a latir.

domingo, 8 de fevereiro de 2009

LEMINSKI

Isso de querer ser exatamente aquilo que a gente é ainda vai nos levar além.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

UMA CENA

Um quarto sombrio. O Velho está sentado na cama. Além dela, há um armário. São os únicos móveis do quarto.

- Mais um dia. Isso não acaba nunca.

O Velho se levanta e vai até o armário. Pega o único terno que possui.

- Isso aqui foi minha ferramenta quando eu era jovem. Quando eu era vivo. Sete horas e meu café ainda não chegou. Onde está a mulher?

A porta se abre e a Mulher entra no quarto. Ela é um pouco mais jovem que o Velho, mas já demonstra o passar dos anos.

- Chegou o seu café. Fiz umas torradas também. Você precisa se alimentar.
- Trinta anos neste quarto.
- Você precisa se alimentar. Está muito fraco.
- Trinta anos é uma vida.
- Precisa comer. Saco vazio não para em pé.
- Eu costumava dançar.
- É.
- Eu dançava bem.
- Isso foi há muito tempo.
- Quando esse prédio ainda tinha vida. Agora está abandonado.
- Não pensa nisso.
- As pessoas vinham de longe para me ver dançar. O salão aqui em cima ficava lotado.
- Para com isso.
- Aqui era o meu camarim. Eu dava entrevistas.
- Que martírio.
- Agora é apenas um quarto. Um depósito.
- Eu preciso ir.
- Depósito de ossos.
- Vou embora.
- Eu sei.
- Você vem hoje?
- Você sabe que eu nunca vou.
- Eu sei.

A Mulher sai. O Velho senta-se na cama e fica olhando para o terno no armário.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

SAKURÁ


Inácio acorda mais cedo, incomodado pela claridade. É a primeira vez que o dia fica tão claro. Ele não sente mais frio, está com uma sensação diferente, de liberdade. Num ímpeto, abre a janela da casa, pela primeira vez em quatro meses. Uma atmosfera cor-de-rosa penetra no quarto. Clara acorda, surpresa. Vai até a janela e encosta a cabeça em Inácio, que está de costas para ela. Ambos veem as flores das cerejeiras - é primavera no Japão. Alguém bate na porta. É Akira. Inácio se assusta e pergunta se estavam fazendo barulho. O velho sorri e diz que o motivo da visita, desta vez, é outro. Explica que nunca se incomodou com o barulho. Quando o velho batia nas paredes era para impedir que eles continuassem brigando daquele jeito. Akira trouxe bolinhos de arroz e oferece ao casal. Inácio pergunta se não é muito cedo para bolinhos de arroz. Akira diz que não há hora para bolinhos de arroz. Ou melhor: que bolinhos de arroz são para celebrar as belas horas. Clara entende e convida o velho para entrar e tomar café com eles. Akira aceita. Estão os três sentados na mesinha da copa, conversando. Akira conta que foi ele quem pegou emprestado o sabão em pó e depois colocou o embrulho na porta. Todos riem. Clara e Inácio se entreolham e dão as mãos. O velho percebe e abaixa a cabeça, tímido. Eles sorriem. Akira então conta uma história tradicional sobre a primavera. No Japão, ela significa o reconforto, após a dureza do inverno. Se não traz a certeza da reconciliação, aponta pelo menos uma possibilidade de recomeço. Naquela noite, Inácio e Clara voltariam a dormir com os pés colados.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

É PRECISO OUVIR AS FORMIGAS


Uma praça vazia. Um enorme quadrado de concreto. Ao lado, outro. Outro do outro lado também. E acima, e abaixo, assim sucessivamente. Entre as placas (que já esboçam suas rugas, sinal do tempo) a grama desponta, errática, alheia a qualquer regulamento. A câmera registra. Eterniza o instante. A dona da câmera encosta o ouvido no chão. Sente o mundo respirar. Ouve um batimento cardíaco e não consegue distinguir: “Será que é o meu?”. Um pingo d’água não erra a mira, acerta em cheio suas costas, alvo fácil estendido no piso do mundo. “É o primeiro, é um aviso”, ela pensa. Mais um. E o terceiro. Ela perde a conta. Vira o corpo e olha o céu. Abre a boca e mata a sede. (Precisa fechar rápido, para não engasgar). Passa o tempo, mas ela não sabe quanto. Está ali no chão, estirada. As placas de concreto sustentam seu corpo. Um séquito de formigas. Não, uma multidão. Andam de cá para lá, por todos os lados, pelas placas de concreto. Algumas enveredam pela grama e somem. Outras reaparecem, brotam do chão. Ela pega a câmera e se prepara. Ajoelha-se. Deita-se de lado, a orelha direita novamente encostada no chão, ouvindo tudo. Duas formigas desprendem-se do todo. Parecem buscar privacidade. Ela clica. Elas param. De frente uma para a outra, começam o que parece um diálogo absurdo. Novo clique. Nova pausa. Então ela escuta: “Meu amor, meu amor, não vá. Eu preciso tanto de você”.


(foto: Anna Hillman)

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

FIGURAS DO MUNDO FLUTUANTE


A imagem aí em cima é talvez minha lembrança mais recorrente do tempo em que vivi no Japão. Dia sim, dia não, ela reaparece na minha cabeça. É uma gravura ukiyo-e, do Hokusai. Sou capaz de ficar olhando horas para ela, como fiz da primeira vez em que a vi, num museu em Tóquio. Isso faz 10 anos, e ela continua me arrebatando, levando meu pensamento para (bem) longe daqui. Criado há mais de 300 anos, o ukiyo-e é uma das principais formas de expressão da cultura japonesa. Tem poesia até no nome. A tradução literal da palavra é "figuras do mundo flutuante". Compilada do vocabulário budista, indica uma visão idealizada da vida e do comportamento humano. Pra mim, passa a idéia de efemeridade, como se os temas retratados vagassem no tempo e no espaço. Como se a vida não fosse nada mais do que um sonho passageiro. No ano passado, eu naveguei por águas turbulentas como as da gravura do Hokusai. Nem tudo de mim se salvou, mas continuo aqui. Dois mil e nove, ao que parece, me fará cruzar mares não menos arriscados, mas muito mais convidativos. Tá bom assim. Eu nunca fui de calmaria mesmo.