segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

MONÓLOGO

Quarto de hospital. Cheiro de hospital. Um leito. Um moribundo. Está sozinho no quarto.

- Carcaça. Carcaça podre e mal cheirosa. Uma existência que não se deu. Mero acúmulo de anos. Nada mais. Agora é esperar pela única coisa real, concreta, numa vida inteira. Já posso ver vocês, aves imundas. Venham comer, venham. Acham que tenho medo? Vocês trazem alívio em suas asas negras. Continuam a me espreitar? (Gritando.) Vão embora! Vão embora! Sumam daqui!

Entra uma enfermeira. Observa o moribundo em seu delírio. Para diminuir seu sofrimento, aplica-lhe mais uma injeção de morfina.

- Uma criança. Não passo de uma criança agora. (Vê a imagem da mãe.) Sim, mãe, já acordei, não precisa chamar mais. Já estou descendo para o café. O papai está esperando no carro? Já? Que mania! Odeio acordar cedo para ir à escola. Já estou descendo! Dói menos agora. Ainda bem. Diria 'graças a deus' anos atrás, anos da infância. Você ensinou assim, mãe. Lembra? Mas agora é só 'ainda bem'. Dói menos, AINDA BEM. Eu desaprendi. Ou melhor: quis desaprender. Todas as suas rezas e tudo o mais que você me ensinou. Cortei os laços. Não há mais vínculo. Não há mais mãe. Não há mais nada. Dói menos agora, ainda bem. Já não sinto nada, graças a d... Ainda bem. Você diria que um anjo está vindo para me buscar, não é, mãe? Mas não vejo anjo nenhum. Também não vejo mais os abutres, os urubus. Para onde foram? Não há mais carcaça aqui, apenas uma criança mostrando os dentes. Sorrio um sorriso infantil, inocente, porque dor não há mais. Não há mais dor. Não há mais. Não há. Dor.

Silêncio.

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