Neste segundo semestre, vou remexer meu baú de fotos, textos e memórias. Voltarei dez anos no tempo. Decidi terminar, a qualquer custo, uma peça que comecei a escrever em 2004. Chama-se "Sakurá", que é o nome dado ao florescer das cerejeiras, fenômeno que anuncia a chegada da primavera no Japão. O país inteiro fica cor-de-rosa. A história, em princípio situada em Tóquio, é sobre um casal que vai morar e trabalhar lá. Vivi uma situação parecida, entre 1999 e 2000, quando me mudei para a capital japonesa, com minha primeira mulher. A peça já está quase totalmente concluída - na minha cabeça. No papel, dos cinco atos que ela deverá ter, só dois estão integralmente escritos, o primeiro e o último. Este foi apresentado numa leitura dramática, no Teatro do Centro da Terra, em 2005. Todas as vezes que tentei terminá-la, não consegui. Faltava um certo distanciamento, algo que só vem com o tempo, com o passar dos anos. Agora chegou o momento, acho. Se não terminar agora, temo esquecê-la dentro de alguma pasta virtual e nunca mais voltar a ela. Por conta desse processo de escritura que ora se inicia, comecei a selecionar algumas obras da literatura japonesa, a fim de impregnar meu espírito com essa atmosfera oriental, bem diferente da que vivo no meu cotidiano urbanóide do ocidente. Separei alguns Watanabe para ler, outros para reler (como a obra-prima "Kyoto"). Idem com Mishima, Tanizaki, Murakami e Oe. Ontem à noite, saquei da estante uma obra que comprei no começo do ano e permanecia intocada, de um autor de quem nunca li nada: Nagai Kafu. Foi só abrir na primeira página, e começar a leitura, para perceber o quanto o Japão e suas coisas ainda me tocam. Basta uma pequena descrição de uma rua, de um bairro, de um aroma, e tudo volta à minha cabeça. As lembranças chegam aos jorros, umas atropelando as outras; revejo a vilazinha onde eu morava, as velhinhas curvadas cuidando do lixo; minha casa, o mapa do Japão pendurado na parede sala, os alfinetes coloridos apontando os lugares que visitamos e os que ainda visitaríamos; o trajeto até o trabalho, que percorríamos de bicicleta, pelas ruazinhas tortuosas, cheirando a peixe e incenso; o enorme e suculento prato de lámen que comíamos no inverno num pequeno restaurante familiar que parecia saído do período Edo, etc. etc. O livro em questão, que despertou em mim todas essas memórias, foi escrito em 1931 e chama-se "Crônica da Estação das Chuvas". Só o título já me tira da realidade e me evoca uma outra lembrança, que sinto agora quase fisicamente: eu me vejo à janela de casa, num domingo qualquer de setembro ou outubro, quando chove cântaros no Japão, olhando o aguaceiro. Adorava fazer isso, quase não via o tempo passar. Foi no Japão que aprendi a contemplar. Com prática, é possível ficar realmente bom nisso. Pena que desaprendi. Agora é só uma lembrança, uma sensação, um halo. Vou voltar a ela e a todas as outras nos próximos dias, ou meses. A viagem ao meu passado recente começa agora.
quarta-feira, 12 de agosto de 2009
DE NOVO, O JAPÃO
Neste segundo semestre, vou remexer meu baú de fotos, textos e memórias. Voltarei dez anos no tempo. Decidi terminar, a qualquer custo, uma peça que comecei a escrever em 2004. Chama-se "Sakurá", que é o nome dado ao florescer das cerejeiras, fenômeno que anuncia a chegada da primavera no Japão. O país inteiro fica cor-de-rosa. A história, em princípio situada em Tóquio, é sobre um casal que vai morar e trabalhar lá. Vivi uma situação parecida, entre 1999 e 2000, quando me mudei para a capital japonesa, com minha primeira mulher. A peça já está quase totalmente concluída - na minha cabeça. No papel, dos cinco atos que ela deverá ter, só dois estão integralmente escritos, o primeiro e o último. Este foi apresentado numa leitura dramática, no Teatro do Centro da Terra, em 2005. Todas as vezes que tentei terminá-la, não consegui. Faltava um certo distanciamento, algo que só vem com o tempo, com o passar dos anos. Agora chegou o momento, acho. Se não terminar agora, temo esquecê-la dentro de alguma pasta virtual e nunca mais voltar a ela. Por conta desse processo de escritura que ora se inicia, comecei a selecionar algumas obras da literatura japonesa, a fim de impregnar meu espírito com essa atmosfera oriental, bem diferente da que vivo no meu cotidiano urbanóide do ocidente. Separei alguns Watanabe para ler, outros para reler (como a obra-prima "Kyoto"). Idem com Mishima, Tanizaki, Murakami e Oe. Ontem à noite, saquei da estante uma obra que comprei no começo do ano e permanecia intocada, de um autor de quem nunca li nada: Nagai Kafu. Foi só abrir na primeira página, e começar a leitura, para perceber o quanto o Japão e suas coisas ainda me tocam. Basta uma pequena descrição de uma rua, de um bairro, de um aroma, e tudo volta à minha cabeça. As lembranças chegam aos jorros, umas atropelando as outras; revejo a vilazinha onde eu morava, as velhinhas curvadas cuidando do lixo; minha casa, o mapa do Japão pendurado na parede sala, os alfinetes coloridos apontando os lugares que visitamos e os que ainda visitaríamos; o trajeto até o trabalho, que percorríamos de bicicleta, pelas ruazinhas tortuosas, cheirando a peixe e incenso; o enorme e suculento prato de lámen que comíamos no inverno num pequeno restaurante familiar que parecia saído do período Edo, etc. etc. O livro em questão, que despertou em mim todas essas memórias, foi escrito em 1931 e chama-se "Crônica da Estação das Chuvas". Só o título já me tira da realidade e me evoca uma outra lembrança, que sinto agora quase fisicamente: eu me vejo à janela de casa, num domingo qualquer de setembro ou outubro, quando chove cântaros no Japão, olhando o aguaceiro. Adorava fazer isso, quase não via o tempo passar. Foi no Japão que aprendi a contemplar. Com prática, é possível ficar realmente bom nisso. Pena que desaprendi. Agora é só uma lembrança, uma sensação, um halo. Vou voltar a ela e a todas as outras nos próximos dias, ou meses. A viagem ao meu passado recente começa agora.
segunda-feira, 20 de abril de 2009
MEMÓRIA OLFATIVA
quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009
SAKURÁ
Inácio acorda mais cedo, incomodado pela claridade. É a primeira vez que o dia fica tão claro. Ele não sente mais frio, está com uma sensação diferente, de liberdade. Num ímpeto, abre a janela da casa, pela primeira vez em quatro meses. Uma atmosfera cor-de-rosa penetra no quarto. Clara acorda, surpresa. Vai até a janela e encosta a cabeça em Inácio, que está de costas para ela. Ambos veem as flores das cerejeiras - é primavera no Japão. Alguém bate na porta. É Akira. Inácio se assusta e pergunta se estavam fazendo barulho. O velho sorri e diz que o motivo da visita, desta vez, é outro. Explica que nunca se incomodou com o barulho. Quando o velho batia nas paredes era para impedir que eles continuassem brigando daquele jeito. Akira trouxe bolinhos de arroz e oferece ao casal. Inácio pergunta se não é muito cedo para bolinhos de arroz. Akira diz que não há hora para bolinhos de arroz. Ou melhor: que bolinhos de arroz são para celebrar as belas horas. Clara entende e convida o velho para entrar e tomar café com eles. Akira aceita. Estão os três sentados na mesinha da copa, conversando. Akira conta que foi ele quem pegou emprestado o sabão em pó e depois colocou o embrulho na porta. Todos riem. Clara e Inácio se entreolham e dão as mãos. O velho percebe e abaixa a cabeça, tímido. Eles sorriem. Akira então conta uma história tradicional sobre a primavera. No Japão, ela significa o reconforto, após a dureza do inverno. Se não traz a certeza da reconciliação, aponta pelo menos uma possibilidade de recomeço. Naquela noite, Inácio e Clara voltariam a dormir com os pés colados.
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
FIGURAS DO MUNDO FLUTUANTE

A imagem aí em cima é talvez minha lembrança mais recorrente do tempo em que vivi no Japão. Dia sim, dia não, ela reaparece na minha cabeça. É uma gravura ukiyo-e, do Hokusai. Sou capaz de ficar olhando horas para ela, como fiz da primeira vez em que a vi, num museu em Tóquio. Isso faz 10 anos, e ela continua me arrebatando, levando meu pensamento para (bem) longe daqui. Criado há mais de 300 anos, o ukiyo-e é uma das principais formas de expressão da cultura japonesa. Tem poesia até no nome. A tradução literal da palavra é "figuras do mundo flutuante". Compilada do vocabulário budista, indica uma visão idealizada da vida e do comportamento humano. Pra mim, passa a idéia de efemeridade, como se os temas retratados vagassem no tempo e no espaço. Como se a vida não fosse nada mais do que um sonho passageiro. No ano passado, eu naveguei por águas turbulentas como as da gravura do Hokusai. Nem tudo de mim se salvou, mas continuo aqui. Dois mil e nove, ao que parece, me fará cruzar mares não menos arriscados, mas muito mais convidativos. Tá bom assim. Eu nunca fui de calmaria mesmo.