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quarta-feira, 12 de agosto de 2009

DE NOVO, O JAPÃO


Neste segundo semestre, vou remexer meu baú de fotos, textos e memórias. Voltarei dez anos no tempo. Decidi terminar, a qualquer custo, uma peça que comecei a escrever em 2004. Chama-se "Sakurá", que é o nome dado ao florescer das cerejeiras, fenômeno que anuncia a chegada da primavera no Japão. O país inteiro fica cor-de-rosa. A história, em princípio situada em Tóquio, é sobre um casal que vai morar e trabalhar lá. Vivi uma situação parecida, entre 1999 e 2000, quando me mudei para a capital japonesa, com minha primeira mulher. A peça já está quase totalmente concluída - na minha cabeça. No papel, dos cinco atos que ela deverá ter, só dois estão integralmente escritos, o primeiro e o último. Este foi apresentado numa leitura dramática, no Teatro do Centro da Terra, em 2005. Todas as vezes que tentei terminá-la, não consegui. Faltava um certo distanciamento, algo que só vem com o tempo, com o passar dos anos. Agora chegou o momento, acho. Se não terminar agora, temo esquecê-la dentro de alguma pasta virtual e nunca mais voltar a ela. Por conta desse processo de escritura que ora se inicia, comecei a selecionar algumas obras da literatura japonesa, a fim de impregnar meu espírito com essa atmosfera oriental, bem diferente da que vivo no meu cotidiano urbanóide do ocidente. Separei alguns Watanabe para ler, outros para reler (como a obra-prima "Kyoto"). Idem com Mishima, Tanizaki, Murakami e Oe. Ontem à noite, saquei da estante uma obra que comprei no começo do ano e permanecia intocada, de um autor de quem nunca li nada: Nagai Kafu. Foi só abrir na primeira página, e começar a leitura, para perceber o quanto o Japão e suas coisas ainda me tocam. Basta uma pequena descrição de uma rua, de um bairro, de um aroma, e tudo volta à minha cabeça. As lembranças chegam aos jorros, umas atropelando as outras; revejo a vilazinha onde eu morava, as velhinhas curvadas cuidando do lixo; minha casa, o mapa do Japão pendurado na parede sala, os alfinetes coloridos apontando os lugares que visitamos e os que ainda visitaríamos; o trajeto até o trabalho, que percorríamos de bicicleta, pelas ruazinhas tortuosas, cheirando a peixe e incenso; o enorme e suculento prato de lámen que comíamos no inverno num pequeno restaurante familiar que parecia saído do período Edo, etc. etc. O livro em questão, que despertou em mim todas essas memórias, foi escrito em 1931 e chama-se "Crônica da Estação das Chuvas". Só o título já me tira da realidade e me evoca uma outra lembrança, que sinto agora quase fisicamente: eu me vejo à janela de casa, num domingo qualquer de setembro ou outubro, quando chove cântaros no Japão, olhando o aguaceiro. Adorava fazer isso, quase não via o tempo passar. Foi no Japão que aprendi a contemplar. Com prática, é possível ficar realmente bom nisso. Pena que desaprendi. Agora é só uma lembrança, uma sensação, um halo. Vou voltar a ela e a todas as outras nos próximos dias, ou meses. A viagem ao meu passado recente começa agora.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

MEMÓRIA OLFATIVA

Uma noite dessas, eu estava tomando uma cerveja, sozinho, no bar dos Parlapatões, na Praça Roosevelt, onde as coisas acontecem, e eu aguardava a hora de começar "Filosofia na Alcova", peça que ia assistir no Satyros, logo ao lado, e dei o último gole, fui ao banheiro, esvaziar a bexiga, como sempre faço, vontade que sempre vem antes de começar a sessão de teatro ou de cinema, e nem bem ultrapassei a porta, fui tomado por uma nostalgia como fazia tempo não me ocorria, e, de uma vez, veio a história toda, um turbilhão de lembranças desordenadas, e quem conhece o banheiro do Parlapas sabe que ele costuma ter um aroma cítrico, algo entre o cheiro do limão e da laranja, não é totalmente um, nem totalmente outro, um híbrido dos dois, e foi o bastante para acionar minha memória olfativa, que, devo reconhecer, é bastante desenvolvida, e aquele gostoso odor de frutas me fez voltar exatos dez anos e eu, de repente, me vi no minúsculo banheiro da minha pequena casa japonesa, em Tóquio, e minha ex-mulher era muito caprichosa com a casa, sempre tinha um cheiro novo, alguma essência, um sabonete inédito, uma vela de cheiro, um sachê, e sempre que via, ela comprava alguma coisa diferente, ela adorava comprar, e eu me lembrava da casa, de nós dois, do inverno cinza e da primavera cor-de-rosa, contraste que inspirou minha primeira peça, o mapa do Japão na parede com os lugares que já tínhamos ido e os muitos outros que iríamos conhecer e não conhecemos, marcados com alfinetes coloridos, e nós olhávamos para esses destinos e fazíamos planos, e a geladeira que batia na nossa cintura, que de tão pequena nos obrigava a fazer compras de dois em dois dias, e o fogão de duas bocas em que fritávamos camarões nos domingos, e que pediam um bom vinho branco, mas a gente preferia cerveja escura, e tinha também aquele salmão que ela fazia, que ficava crocante por fora, e molinho por dentro, feito sashimi, e o chão de tatame em que só podíamos pisar descalços, e que era uma delícia de pisar, e, mais do que tudo, a adorável mania que ela tinha de me olhar enquanto eu dormia, e eu acordava e já via aqueles olhos me olhando, e eles sempre brilhavam, mesmo de manhã cedo ao acordar, eram olhos de coelho, e os olhos dela brilhavam ainda mais quando ela sentia aqueles odores todos, porque a casa ficava mais bonita, mais arejada, mais leve, havia um frescor no ar, exatamente aquele cheiro de limão-laranja do banheiro do Parlapas, e eu estava na frente do espelho, lavando as mãos, e vi meu rosto refletido e nele havia uma pergunta incrustada nas minhas rugas, estampada na minha mais recente calva, que finalmente alcançou minha boca e, traduzindo em palavras, me perguntei por que, na época, eu não me importava tanto com esses cheiros e com essas coisas todas.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2009

SAKURÁ


Inácio acorda mais cedo, incomodado pela claridade. É a primeira vez que o dia fica tão claro. Ele não sente mais frio, está com uma sensação diferente, de liberdade. Num ímpeto, abre a janela da casa, pela primeira vez em quatro meses. Uma atmosfera cor-de-rosa penetra no quarto. Clara acorda, surpresa. Vai até a janela e encosta a cabeça em Inácio, que está de costas para ela. Ambos veem as flores das cerejeiras - é primavera no Japão. Alguém bate na porta. É Akira. Inácio se assusta e pergunta se estavam fazendo barulho. O velho sorri e diz que o motivo da visita, desta vez, é outro. Explica que nunca se incomodou com o barulho. Quando o velho batia nas paredes era para impedir que eles continuassem brigando daquele jeito. Akira trouxe bolinhos de arroz e oferece ao casal. Inácio pergunta se não é muito cedo para bolinhos de arroz. Akira diz que não há hora para bolinhos de arroz. Ou melhor: que bolinhos de arroz são para celebrar as belas horas. Clara entende e convida o velho para entrar e tomar café com eles. Akira aceita. Estão os três sentados na mesinha da copa, conversando. Akira conta que foi ele quem pegou emprestado o sabão em pó e depois colocou o embrulho na porta. Todos riem. Clara e Inácio se entreolham e dão as mãos. O velho percebe e abaixa a cabeça, tímido. Eles sorriem. Akira então conta uma história tradicional sobre a primavera. No Japão, ela significa o reconforto, após a dureza do inverno. Se não traz a certeza da reconciliação, aponta pelo menos uma possibilidade de recomeço. Naquela noite, Inácio e Clara voltariam a dormir com os pés colados.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

FIGURAS DO MUNDO FLUTUANTE


A imagem aí em cima é talvez minha lembrança mais recorrente do tempo em que vivi no Japão. Dia sim, dia não, ela reaparece na minha cabeça. É uma gravura ukiyo-e, do Hokusai. Sou capaz de ficar olhando horas para ela, como fiz da primeira vez em que a vi, num museu em Tóquio. Isso faz 10 anos, e ela continua me arrebatando, levando meu pensamento para (bem) longe daqui. Criado há mais de 300 anos, o ukiyo-e é uma das principais formas de expressão da cultura japonesa. Tem poesia até no nome. A tradução literal da palavra é "figuras do mundo flutuante". Compilada do vocabulário budista, indica uma visão idealizada da vida e do comportamento humano. Pra mim, passa a idéia de efemeridade, como se os temas retratados vagassem no tempo e no espaço. Como se a vida não fosse nada mais do que um sonho passageiro. No ano passado, eu naveguei por águas turbulentas como as da gravura do Hokusai. Nem tudo de mim se salvou, mas continuo aqui. Dois mil e nove, ao que parece, me fará cruzar mares não menos arriscados, mas muito mais convidativos. Tá bom assim. Eu nunca fui de calmaria mesmo.