segunda-feira, 20 de abril de 2009

MEMÓRIA OLFATIVA

Uma noite dessas, eu estava tomando uma cerveja, sozinho, no bar dos Parlapatões, na Praça Roosevelt, onde as coisas acontecem, e eu aguardava a hora de começar "Filosofia na Alcova", peça que ia assistir no Satyros, logo ao lado, e dei o último gole, fui ao banheiro, esvaziar a bexiga, como sempre faço, vontade que sempre vem antes de começar a sessão de teatro ou de cinema, e nem bem ultrapassei a porta, fui tomado por uma nostalgia como fazia tempo não me ocorria, e, de uma vez, veio a história toda, um turbilhão de lembranças desordenadas, e quem conhece o banheiro do Parlapas sabe que ele costuma ter um aroma cítrico, algo entre o cheiro do limão e da laranja, não é totalmente um, nem totalmente outro, um híbrido dos dois, e foi o bastante para acionar minha memória olfativa, que, devo reconhecer, é bastante desenvolvida, e aquele gostoso odor de frutas me fez voltar exatos dez anos e eu, de repente, me vi no minúsculo banheiro da minha pequena casa japonesa, em Tóquio, e minha ex-mulher era muito caprichosa com a casa, sempre tinha um cheiro novo, alguma essência, um sabonete inédito, uma vela de cheiro, um sachê, e sempre que via, ela comprava alguma coisa diferente, ela adorava comprar, e eu me lembrava da casa, de nós dois, do inverno cinza e da primavera cor-de-rosa, contraste que inspirou minha primeira peça, o mapa do Japão na parede com os lugares que já tínhamos ido e os muitos outros que iríamos conhecer e não conhecemos, marcados com alfinetes coloridos, e nós olhávamos para esses destinos e fazíamos planos, e a geladeira que batia na nossa cintura, que de tão pequena nos obrigava a fazer compras de dois em dois dias, e o fogão de duas bocas em que fritávamos camarões nos domingos, e que pediam um bom vinho branco, mas a gente preferia cerveja escura, e tinha também aquele salmão que ela fazia, que ficava crocante por fora, e molinho por dentro, feito sashimi, e o chão de tatame em que só podíamos pisar descalços, e que era uma delícia de pisar, e, mais do que tudo, a adorável mania que ela tinha de me olhar enquanto eu dormia, e eu acordava e já via aqueles olhos me olhando, e eles sempre brilhavam, mesmo de manhã cedo ao acordar, eram olhos de coelho, e os olhos dela brilhavam ainda mais quando ela sentia aqueles odores todos, porque a casa ficava mais bonita, mais arejada, mais leve, havia um frescor no ar, exatamente aquele cheiro de limão-laranja do banheiro do Parlapas, e eu estava na frente do espelho, lavando as mãos, e vi meu rosto refletido e nele havia uma pergunta incrustada nas minhas rugas, estampada na minha mais recente calva, que finalmente alcançou minha boca e, traduzindo em palavras, me perguntei por que, na época, eu não me importava tanto com esses cheiros e com essas coisas todas.

2 comentários:

Majori Claro disse...

Muito tocante este seu texto, Paulo. Embora ele me chegue transbordando mais letras que odores, ainda assim tocou minha memória. De você, nas aulas do Samir falando da sua vida no Japão, da mudança mágica das estações, de como esse cenário mutante pode representar com perfeição a trajetória de um relacionamento... Parece ser um daqueles nós que a gente precisa desatar criando imagens, peças, poemas, perguntas... Por quê? Por que o ego demora tanto para alcançar a alma? Também eu me faço perguntas assim, e me pego pensando que daria tudo para voltar no tempo e fazer diferente. Ainda bem que a gente escreve e a escrita pode reinventar os acontecimentos. Ainda bem que a matéria prima do mundo é sempre a mesma e que um cheiro do passado alcança com facilidade a esquina do futuro. Para quem tem os sentidos atentos como você. Adorei o post, continue escrevendo! Beijos!

Paulo Cunha disse...

Lindas palavras, Majori. Vindas de você, por quem tenho enorme carinho e admiração (como pessoa e como escritora), são um elogio e tanto. Obrigado e um beijo, querida.