terça-feira, 7 de abril de 2009

FLUXO DE CONSCIÊNCIA (SARAH KANE'S EXERCISE)

No campo, um homem caminha, solitário. A estrada é deserta. Ou quase. Passa um caminhão. Uma mulher sorri e acena. É bonita. É caminhoneira. Ela oferece carona. O homem aceita. Os dois na cabine do caminhão. Ele, sem destino. Ela ainda não sabe. Conversam sobre coisas comuns, nada de mais. Sobre o tempo. Sobre os tempos. Ele mira as pernas dela, bem torneadas, bronzeadas pelo sol que penetra na cabine. Lindas botas de couro preto, com detalhes prateados. Ela, olhar fixo nos olhos dele. E assim vão embora, conversando, olhando. Ele pensa no mar. O mar é bravo, agitado. Ele pensa, mas tem medo. Tambores na cabeça. Alma agitada. Mundo agitado. De repente, sente uma mão afagar seus cabelos. A mão passeia pelos cachos aloirados. Tem bastante cabelo para um homem da sua idade. Só então abre os olhos. Por um momento, não vê nada. É tudo escuro. O tempo passa mais rapidamente agora. Mais do que antes. Ele considera a possibilidade de ir para o Japão. Tem curiosidade de ver onde o sol se esconde. Logo descarta a ideia. Sonho impossível. Olha a paisagem. Nada tem de oriental. Pertence a algum lugar da América do Sul. O pasto é vasto, gasto. Abasto fica em Buenos Aires ou Santiago? Ele já não vê mais a mulher, nem suas mãos. Mãos que antes afagavam sua vasta (gasta) cabeleira. Está sentado em sua poltrona na sala, em frente à tevê. Nunca saiu de lá. Há cem anos está sentado, na mesma posição, olhos colados na tela. A janela está aberta. Um pouco. Ele se levanta. Começa a dançar com um par imaginário, braços postos no ar. Estaria no céu? Suas bochechas coladas nas dela. Bochechas imaginárias. Ele sorri. Está dançando de rosto colado. Está no céu, não há dúvida. A música fica mais lenta, adquire um tom grave, mais triste. Ele sofre, compasso a compasso. Pega o controle remoto. Passa rapidamente pelos canais. Pela rua passa um bloco de carnaval, tocando uma marchinha. Que dia é hoje? Da semana? Do mês? Que mês é hoje? Que ano é hoje? “Que importa?”, pergunta para si. O samba está no ar, no éter. Ele tenta alguns passos. São equivocados, erráticos. Ele insiste. Tenta. Fracassa. Tenta de novo. Fracassa de novo. Fracassa melhor. Já ouviu isso, não sabe onde. Chega. “Sei o quanto é ridículo”, pensa alto. Sou ridículo. Um homem ridículo, que sonha. “Não vou mais dançar. Nunca mais”. Nem samba, nem rumba, nem mambo, nem tango. Só rock’n’roll. Ou um blues triste. Talvez. Já esteve melhor. Mas também já esteve pior. Bem pior. Olha para a tevê. Vontade de quebrá-la. Nunca mais ver imagens irreais. Olha pela janela. Outra forma de tevê. Imagens reais. Será? Vontade de quebrar a janela. Ou de saltar. Sobe. Escora-se no parapeito. Olha para baixo. Seres minúsculos abaixo de seus pés. Andam de um lado para outro, em frenética correria. Para onde vão? Por que a pressa de chegar? A quem importa? Interessa? Vale a pena pular? Seria um recomeço? Nem tem tempo de hesitar. Fecha os olhos e lança o corpo no ar. Vê a vida passando como um filme, num daqueles clichês batidíssimos. Lembra de coisas antigas, fatos e pessoas. Tudo misturado com o que ainda não aconteceu. “Acho que consegui/ tudo o que sonhei/ E tão bom estar aqui/ Eu sei”, cantarola. Os pés chocam-se com o solo fértil. Já ia esquecendo, mora no térreo. Três pequenos metros, da janela ao chão. Tenta. Fracassa. Tenta de novo. Fracassa de novo. Fracassa melhor. Terá outra chance? Olha para cima e vê a janela. Quer voltar para aquele deserto, aquela estrada, aquela cabine, aquela mulher. Pega o controle remoto e acessa a memória afetiva. Soprano na mente. Violinos, violas e cellos. Está tudo lá. Pano de fundo. À frente está a voz. Voz que não sai da cabeça. Que segue cantando. Ele quer dançar. Não consegue. Os pés estão enterrados no chão. Afundados num enorme formigueiro. Seres minúsculos, ao trabalho! A carne vai sendo consumida. Funde-se ao solo. De onde veio, para onde vai?

2 comentários:

Suguimoto disse...

Legal, legal, bem legal...

Paulo Cunha disse...

Valeu, meu caro. Um abraço.