quarta-feira, 21 de outubro de 2009

SOBRE BORTOLOTTO, IPODS, CAMINHADAS, CAIO FERNANDO E UM POUCO DE SOLIDÃO

Costumo ler o blog do Mario Bortolotto (http://atirenodramaturgo.zip.net/). Não o conheço pessoalmente, não sou seu amigo, nunca tomamos umas juntos. Já assisti a umas dez peças dele e devo ter lido umas outras dez. Quando eu estudava teatro no Senac, na turma da noite, a gente costumava matar a aula da sexta-feira para assistir a alguma peça. Fomos a umas três ou quatro do Bortolotto. Lembro que minhas amigas, e minha namorada na época, detestavam. Achavam o texto machista, as atuações fracas, a direção ruim e por aí vai. Concordo em parte. Sempre enxerguei alguma poesia na obra do Bortolotto, em alguns textos mais, em outros menos. E havia ali, pelo menos, uma grande atriz: Fernanda D'Umbra. Mas não era bem disso que eu queria falar. Dizia eu que leio o blog do Bortolotto quase sempre. Tem umas coisas que ele escreve, não tudo, de que eu gosto pra caralho. Talvez porque me identifique com elas. Há algum tempo ele vem escrevendo, quase em todo post, que um de seus prazeres é sentar numa mesa de fundo de bar, e ficar ouvindo um blues no seu mp3. Só ele, a música e uma dose de uísque. Mais ninguém. Pouca gente sabe, acho, mas sou um pouco assim. Sou uma pessoa bastante sociável, mas gosto também de curtir uns momentos sozinhos. Tinha uma época, há uns 20 anos, que eu e minha turma de amigos viajávamos para o Nordeste todo verão. Era sempre lá pelo meio de janeiro, início de fevereiro. Eu sempre dava um jeito de sair uma semana antes, sozinho, e me encontrava com eles depois. Gostava de passar um tempo sozinho. Nessas horas, minhas duas únicas companhias eram o rock e a cerveja. Adorava caminhar pelas praias, com uma latinha na mão e o walkman no bolso do calção. Andava quilômetros. Antes de sair de São Paulo, passava no supermercado e comprava um monte de pilhas alcalinas, que custavam bem mais que as comuns, mas valiam o investimento. Meu walkman era aquele tijolo amarelo, da Sony, que podia entrar na água - era o que diziam, eu nunca testei. Anos depois, numa viagem à praia, na casa do meu grande brother Calabró, o xarope do Cesinha voltou totalmente bêbado da balada e vomitou em cima do walkman. Foi o fim dele. E, por coincidência, era o início da era do CD. Tanto que, semanas depois, comprei meu primeiro diskman, também da Sony. Isso foi por volta de 1991, 92. Dois anos depois, entrei na faculdade de jornalismo, na Cásper Líbero, e esse diskman se tornou o meu companheiro de andarilhagem. Era comum, nesta época, a gente ficar tomando umas na "prainha" da Paulista até fechar o último bar. Era bacana: os bares iam fechando e a gente ia pulando para o do lado, que ainda estava aberto. Meu amigo Paulo Sales, que costuma ler esta bagaça e que tem um puta blog legal (http://paradiseduluoz.blogspot.com/), era um dos que, invariavelmente, se fazia presente. Quando a gente decidia, finalmente, ir embora já não tinha mais ônibus, nem metrô. Eu adorava: sacava meu diskman e saia andando rumo a Pinheiros, onde ainda moro. Às vezes, voltava conversando com a minha amiga Mari, que morava perto de mim, e o diskman não era necessário. Mas era raro. O normal era voltar embalado pelo rock. Aquela época ouvia muito britpop, madchester. Era Oasis, blur, Radiohead, James, Inspiral Carpets, Charlatans, Stone Roses, Happy Mondays, Ride, vai por aí. Passei os quatro anos da faculdade assim. Isso se repetiu quando virei correspondente em Paris e, depois, nos dois anos que passei em Tóquio. Minha rotina era andar, andar pelas ruas desconhecidas, muitas vezes escuras e desertas, raramente perigosas (embora misteriosas), com uma cerveja na mão e sons furiosos saindo dos fones de ouvido. De uma certa forma, a música que eu ouvia refletia o que eu sentia - Oasis ou blur na euforia, Radiohead ou Verve nas horas tristes. Aí, na virada do século surgiu o MP3. Quando comprei meu iPod, demorei a compreender a possibilidade de andar com toda (toda mesmo) minha discografia a tiracolo. Demorei uns dois meses para baixar todos os meus quase 2 mil CDs para aquela caixinha branca que cabia no meu bolso. Eram dias e dias de música concentrados num único dispositivo, à minha inteira disposição.
Desculpem, eu devia ter avisado antes: este é um daqueles posts enormes, que blogueiros costumam escrever quando não têm sono, como é o meu caso agora. Continuando, o MP3 resolveu um grande problema que havia antes de sua existência, que era escolher o cassete ou o CD a colocar antes de sair de casa. Não havia mais o quê escolher - era toda uma parede de CDs para ouvir quando eu quisesse. Mas eu falava de solidão e agora me veio na cabeça um conto do Caio Fernando Abreu, o mais lindo de todos os que eu já li dele. Chama-se "Além do Ponto" e é do livro "Morangos Mofados". Fala de andar bêbado por ruas desertas, sob a chuva, à procura de algo que já se sabe que não vai encontrar. É com um trecho desse conto que eu acrescento alguma beleza neste post sem pé nem cabeça.

"Chovia sempre e eu custei para conseguir me levantar daquela poça de lama, chegava num ponto, eu voltava ao ponto, em que era necessário um esforço muito grande, era preciso um esforço tão terrível que precisei sorrir mais sozinho e inventar mais um pouco, aquecendo meu segredo, e dei alguns passos, mas como se faz? me perguntei, como se faz isso de colocar um pé após o outro, equilibrando a cabeça sobre os ombros, mantendo ereta a coluna vertebral, desaprendia, não era quase nada, eu, mantido apenas por aquele fio invisível ligado à minha cabeça, agora tão próximo que se quisesse eu poderia imaginar alguma coisa como um zumbido eletrônico saindo da cabeça dele até chegar na minha, mas como se faz? eu reaprendia e inventava sempre, sempre em direção a ele, para chegar inteiro, os pedaços de mim todos misturados que ele disporia sem pressa, como quem brinca com um quebra-cabeça para formar que castelo, que bosque, que verme ou deus, eu não sabia, mas ia indo pela chuva porque esse era meu único sentido, meu único destino: bater naquela porta escura onde eu batia agora. E bati, e bati outra vez, e tornei a bater, e continuei batendo sem me importar que as pessoas na rua parassem para olhar, eu quis chamá-lo, mas tinha esquecido seu nome, se é que alguma vez o soube, se é que ele teve um dia, talvez eu tivesse febre, tudo ficara muito confuso, idéias misturadas, tremores, água de chuva e lama e conhaque no meu corpo sujo gasto exausto batendo feito louco naquela porta que não abria, era tudo um engano, eu continuava batendo e continuava chovendo sem parar, mas eu não ia mais indo por dentro da chuva, pelo meio da cidade, eu só estava parado naquela porta fazia muito tempo, depois do ponto, tão escuro agora que eu não conseguiria nunca mais encontrar o caminho de volta, nem tentar outra coisa, outra ação, outro gesto além de continuar batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo batendo nesta porta que não abre nunca."

2 comentários:

Paulo Sales disse...

Boas lembranças, meu caro, de uma época em que o Puppy e a prainha eram nossos paraísos particulares. Lembro de uma noite em que você, devidamente regado a cerveja geladíssima, falava com fervor de Nelson Rodrigues, que na época nem fazia muito a minha cabeça. Vivendo e aprendendo, claro.
abração

Paulo Cunha disse...

Bons tempos, meu velho...